Para uma pessoa surda, assistir a “O som do silêncio” é se reconhecer em detalhes. Pode ser num exame de rotina, na comunicação por leitura labial ou em qualquer outra cena sutil para ouvintes, mas que significam muito no dia a dia de alguém com deficiência.
Foi assim com o streamer de games André Santos, o youtuber Gui Fernandes e o analista de redes sociais Jorge Rodrigues. Os três narraram ao G1 como é a experiência de um surdo ao ver o longa, que fala sobre aceitação e adaptação (leia os depoimentos mais abaixo, com spoilers)
Riz Ahmed foi indicado ao Oscar de melhor ator pelo papel do músico Ruben, que perde a audição repentinamente. O filme ainda concorre a outras cinco estatuetas na premiação, marcada para domingo (25). O G1 vai transmitir ao vivo (a partir das 19h30, com o tapete vermelho).
Com destaque raro à cultura dos surdos, “O som do silêncio” agradou a crítica ao deixar de lado o discurso sobre superação, comum em histórias que abordam a deficiência, para mostrar os elementos que envolvem o protagonista num complexo processo de adequação à nova realidade.
André, Gui e Jorge citam pontos problemáticos, como a escolha de um ator ouvinte para o papel. Mas também enumeram os momentos de identificação e as minúcias, gigantes na visão de um surdo, que dão riqueza à história.
Sem acessibilidade
Para assistir ao filme, eles não puderam contar com legendas descritivas. Elas servem para detalhar, além das falas, os sons presentes nas cenas (tiros ao fundo ou batidas na porta, por exemplo). Assim, ajudam pessoas com deficiência a compreender melhor a história.
O Amazon Prime, plataforma onde “O som do silêncio” está disponível, não oferece o recurso e, procurada, não comentou o problema, que é recorrente em serviços de streaming.
“Acontece com todos. Acho que nunca vi um filme estrangeiro com essa opção”, diz Gui.
orge explica que assistir a produções nacionais pode ser ainda mais difícil. “Muitos não têm nem mesmo legenda em português e, quando têm, ela é feita por usuários da internet.”
“É preciso dar abertura também a outras formas de acessibilidade, como a língua de sinais e audiodescrição. Sei que não é simples implantar esse tipo de recurso, mas com certeza o valor social disso é enorme e pode fazer muita diferença na vida de quem precisa”, complementa André.
Gui Fernandes, 23 anos
“Muitos dos filmes com pessoas com deficiência (PcDs) mostram os personagens como uma inspiração ou heróis, que devem superar os obstáculos da sociedade — a falta de libras nas escolas e faculdades, que contraria a lei, por exemplo.
‘O som do silêncio’ fala menos de superação e mais de aceitação, que é o que PcDs mais precisam.
A cena que mais me chamou atenção foi a que mostra como funciona a leitura labial. Muitas vezes, quando falo que leio lábios, as pessoas ficam maravilhadas e acham que tenho algum tipo de super poder. O filme reforça que essa leitura não é infalível.
Nessa cena, Ruben dá uma coçadinha nos lábios de forma involuntária enquanto fala. Nesse momento, o surdo que está conversando com ele o interrompe e pede pra ele repetir o que falou, pois a leitura labial falhou naquele momento. É um detalhe que, acredito eu, muitos ouvintes podem não ter percebido, mas que fez muita diferença pra mim.
Eu fiz o primeiro implante coclear [mesma cirurgia feita pelo personagem principal do filme, para tentar recuperar parte da audição] aos 15 anos e, o segundo, aos 20. Como eu não sabia libras, pois não tive a oportunidade de aprender, o primeiro implante foi primordial pra que eu começasse a ter amigos, ainda mais na adolescência.
O segundo implante deu um salto na audição e fez com que eu pudesse sair até pra bares com música, coisa que eu não fazia antes. Mesmo assim, ainda temos limites, claro. O implante também não é infalível.
Um detalhe importante que o médico do filme cita: depois da cirurgia, a audição “orgânica” não volta. Achei legal isso ter sido falado tão precisamente assim, porque é uma informação que pode ser ignorada na ficção.
Achei estranho o Ruben ter marcado a cirurgia tão rápido e ter saído andando do hospital. No meu caso, tive que fazer uma penca de exames e isso demorou meses. Depois da cirurgia, por mexer na cóclea (uma das responsáveis pelo nosso equilíbrio), a gente fica extremamente tonto. Parece um bebê reaprendendo a andar.
A cena em que ele desliga o aparelho do implante no meio da rua é incrível. Quando eu tinha entre 19 e 21 anos, morei numa rua muito barulhenta. Foi nessa época que comecei a descobrir o quanto o silêncio é maravilhoso.
Tenho a oportunidade que muitos gostariam de ter: posso desligar a audição quando quiser.
Desde então, ligo o aparelho só pra trabalhar ou conversar com outras pessoas.”
Jorge Rodrigues, 25 anos
“‘O som do silêncio’ é um filme diferente de outros que abordam a deficiência e, ao mesmo tempo, não é. O protagonista é o Riz Ahmed, que não é uma pessoa surda, nem possui nenhum tipo de deficiência auditiva. Acho que faltou representatividade.
Por outro lado, teve um trabalho para mostrar as diferenças entre ser surdo e ser DA — que é possuir a deficiência, mas não se identificar com a cultura surda, com a língua de sinais e tudo o que envolve a comunidade surda. Isso é um ponto muito importante.
Me tocou muito uma cena em que o personagem principal estava numa mesa de jantar com os surdos e não entendia nada. Ficava quieto, com raiva, não sabia como reagir ali. Me identifiquei bastante, porque passo por isso quando estou com ouvintes, seja no jantar com a família, com os colegas da faculdade ou com desconhecidos. É um ponto que eu fico bastante incomodado, confesso. Mas já estou acostumado.
A cena em que ele tem que ouvir os sons com um fone de ouvido específico para isso numa salinha isolada [durante uma consulta médica] é algo rotineiro na minha vida. Achei interessante o funcionamento, vendo de fora, porque eu nunca sei o que o médico fala, então para mim, é só barulho.
Também me vi na cena em que ele, já sabendo a língua de sinais, se comunica bem com os outros surdos e fica alegre com isso.
Encontrar com outras pessoas que sabem a libras é uma coisa incrível e inexplicável. É como se você achasse a sua panelinha favorita do ensino médio, sabe? É uma sensação de encontrar a sua turma, na qual você se sente seguro.
André Santos, 34 anos
“O filme mostra uma forma diferente de abordar a surdez, por meio do processo de aceitação. O personagem é alguém fora dos estereótipos, que não nasceu surdo, e está buscando uma forma de viver em sua nova realidade.
Fiquei surdo aos 30 anos. Tive surdez súbita, sem causa detectada, e as cenas em que o médico explica as condições do Ruben são exatamente como as que eu vivi. A audiometria [exame para medir o nível da audição], com palavras confusas que ele tenta repetir sem sucesso, me lembrou muito a minha primeira audiometria de surdez.
A parte em que a pessoa mais próxima a ele [a namorada, Lou] estranha e rejeita a nova situação também aconteceu comigo. Várias pessoas mudaram a forma de me tratar depois da surdez.
Além disso, me reconheci na busca por uma transformação da vida, sem necessariamente seguir uma regra que outras pessoas criaram, mas sim a minha forma de ser surdo do jeito que eu sou, com a minha realidade, me adaptando e me aceitando.
Quando comecei a usar meu aparelho auditivo, não largava dele. Fiquei na mesma ânsia do Ruben, querendo sempre “ouvir” mais. Depois entendi que o aparelho é o meu complemento, mas não o que eu sou. Por mais que ele ajude na audição, muita vezes incomoda e os excessos de ruídos são sempre cansativos.
Quando fiquei surdo, a vontade era de voltar a ouvir, mas percebi que existem diversas formas de ouvir e de se expressar.
Descobrir como me aceitar foi uma delas. Ajudar as pessoas ao meu redor a entender qual o meu processo auditivo e como nós podemos nos comunicar também foi outra parte disso.”
Fonte: G1
Foto: Divulgação